Uma lealdade ‘um pouco acima’

Jorge Pontes

Para avaliarmos e julgarmos as razões e a forma como o ex-ministro Sergio Moro deixou o governo Jair Bolsonaro, devemos trazer à luz alguns pontos fundamentais.

 

Preliminarmente, temos de reconhecer que o fato do presidente da República ser o superior hierárquico do ministro da Justiça não implica que este deva absoluta lealdade àquele, mormente quando requisitado a desvirtuar-se da melhor conduta ética ou de ferir preceitos legais. E aqui não tratamos de um exagero hipotético: recentes ministros da Justiça se comportaram ora como “consiglieri” de organizações criminosas governamentais, ora como dutos para vazamentos entre a Polícia Federal e a Presidência da República.

 

Definitivamente o papel de advogado criminalista do Planalto não era o que a sociedade esperava do Dr Moro, nem tampouco o que ele estaria disposto a realizar quando aceitou o convite para o cargo. Ressaltamos que a obediência cega aos superiores costuma ser conceito mais facilmente encontrado em organizações mafiosas. Não se trata então de negar obediência, mas de recusar enquadrar-se em conduta que tangenciaria a cumplicidade.

 

Nesse contexto, o valor fundamental para a nossa formação é de fato o da lealdade. Mas lealdade a quem? A lealdade maior de um homem da Lei, seja ele policial ou ministro da Justiça, ainda que ocupante momentâneo de sua cadeira, deve ser com o que é correto, com as normas, com a Constituição Federal e com o interesse público. E não, como infelizmente muitos confundem, com o seu chefe imediato.

 

Não se trata de defesa da quebra de hierarquia ou de inconfidências entre velhos parceiros, mas das bases da própria democracia. O chefe, na repartição pública, não é um amigo. O que norteia a relação hierárquica no serviço público é o interesse social. A amizade passa longe daí.

 

Em relação a essa relativização do conceito de lealdade hierárquica no serviço público, merecem ser assinaladas algumas das reflexões de James Comey, ex-diretor-geral do FBI, demitido no início da administração do presidente americano Donald Trump, por não aceitar submeter-se a diretrizes ilegais do chefe, registradas em seu livro “A Higher Loyalty – Truth, lies and leadership”, publicado pela Flatiron Books em 2018. O que Comey reitera é que a lealdade à Lei é sempre superior à lealdade a um chefe, principalmente quando este comete ilícitos graves. Não existe, no serviço público, lealdade a chefe desonesto.

 

A lealdade acaba no limite da legalidade. Dr. Sergio Moro não era um simples estafeta para se calar e omitir-se diante de pedidos pouco republicanos do presidente, muito pelo contrário, estava ali para zelar pela legalidade do governo.

 

E não foi à toa que Comey batizou seu livro de “A Higher Loyalty”. A “lealdade acima” (do superior hierárquico) é aquela exercida para com a ética, as regras democráticas e a função social de uma instituição como a Polícia Federal, por exemplo. E este exercício da lealdade acima da convencional é o que se espera de um ministro de Estado ou de um chefe de polícia, quando este se depara com um superior que demonstra desvios de conduta e pouca confiabilidade.

 

E o ex-ministro teve a coragem de se entrincheirar em defesa da integridade da polícia judiciária da União. Não podíamos esperar nada diferente de quem já havia enfrentado situações mais adversas ao lado e em defesa da Lei. A ordem ilegal não se cumpre, inclusive a emanada pelo presidente da República. Portanto, fez bem não apenas em deixar o cargo denunciando a intenção do cometimento de crime, como também agiu acertadamente quando do registro da tela do seu celular, guardando a materialidade do suposto crime intentado pelo seu chefe.

 

Vale voltar à analogia das máfias. Nestas organizações, a obediência cega é requisito em seus códigos de conduta, escritos ou não. Em sua autobiografia “Man of Honor”, lançada em 2003, o capo italiano Joseph Bonanno explica com singular propriedade: “friendship, connections, family ties, trust, loyalty, obedience – this was the glue that held us together”. Em tradução livre, “a argamassa que nos mantinha juntos era a amizade, as conexões, os laços de família, a confiança, a lealdade e a obediência”.

 

Há, portanto, motivos de sobra para que busquemos uma lealdade que transcenda as circunstâncias da política e a frieza objetiva da hierarquia.. Quando os espaços estatais são ocupados por quadrilhas, cria-se um abismo entre os interesses do governo de ocasião e os de Estado. E é preciso estar sempre junto destes últimos. Esse é o grande desafio ora enfrentado não apenas pelas instituições encarregadas da persecução penal, mas por toda a sociedade.

 

Essa relativização da lealdade hierárquica fica ainda mais relevante enquanto não há plena autonomia administrativa e orçamentária da Polícia Federal. Esta providência, que é uma forma de proteção contra vazamentos ou pressões superiores, funcionará como “compartimentação institucional”, ou, usando uma metáfora militar, será a construção da Polícia Federal como quem projeta um submarino nuclear de longo curso, com aquelas portas de aço que têm o poder de compartimentar e de isolar as áreas porventura tomadas pela água do mar.

 

Por fim, a polarização de opiniões percebida em torno da conduta do ex-ministro é o que, nesses fatos, mais deveria nos preocupar. Ela denota que a sociedade brasileira ainda está longe de desenvolver condições culturais – e morais – para vencer a corrupção sistêmica encerrada em si própria.

Jorge Pontes é delegado de Polícia Federal e foi diretor da Interpol

 
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