Para Rogério Arantes, da USP, cientista político, espírito de corpo de integrantes da PF e reação do STF indicam capacidade de resistência de instituições
Os desdobramentos da crise provocada pela decisão do presidente Jair Bolsonaro de mudar o comando da Polícia Federal mostraram que tentativas de interferência política do presidente na instituição encontrarão obstáculos significativos, diz o cientista político Rogério Arantes, da Universidade de São Paulo.
“As chefias dessas instituições podem cair em mãos alheias, mas há uma cultura institucional capaz de resistir a elas”, diz Arantes, autor de estudos sobre o fortalecimento da PF, do Ministério Público e de outros órgãos de controle após a redemocratização do país e a promulgação da Constituição de 1988.
O cientista político Rogerio Arantes em seminário da Folha sobre os 30 anos da Constituição
O cientista político Rogério Arantes em seminário da Folha sobre os 30 anos da Constituição – Keiny Andrade – 15.out.2018/Folhapress
Na sua avaliação, a investida de Bolsonaro sobre a PF faz parte de um esforço para desmantelar essa rede de instituições e dá continuidade a uma ofensiva iniciada pela classe política quando a Operação Lava Jato estava no auge.
Para o pesquisador, o ex-ministro da Justiça Sergio Moro, que foi responsável pelas ações da Lava Jato em Curitiba antes de entrar no governo, pouco fez para conter esse movimento antes de seu rompimento com Bolsonaro.
Moro se demitiu por discordar da decisão do presidente de trocar o diretor-geral da PF, substituindo o delegado Maurício Valeixo, que o ex-juiz escolhera, pelo diretor da Abin (Agência Brasileira de Inteligência), Alexandre Ramagem, alinhado com Bolsonaro.
O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, barrou a indicação, e o presidente nomeou para o cargo o delegado Rolando de Souza, que era braço direito de Ramagem na Abin.
“No pior dos nossos pesadelos, talvez o presidente almeje uma polícia política, em dobradinha com a Abin, e ambas a seu serviço pessoal”, diz Arantes, que defende mandatos fixos para o diretor-geral da PF e autonomia financeira para preservar a instituição.
Tem sentido falar em autonomia da Polícia Federal? A rigor, a PF não é um órgão autônomo como o Judiciário ou o Ministério Público, embora muitos defendam que deveria ser. Ela é um órgão do Poder Executivo, submetido ao Ministério da Justiça, que se subordina ao presidente.
O que muitos chamam de autonomia da PF é, na verdade, resultado de um processo de afirmação institucional que a foi blindando contra interferências políticas externas, mas que ainda não se consolidou em lei ou na Constituição.
Como a PF conseguiu isso? Ela recebeu forte investimento em governos anteriores, mas o principal foi um processo interno de renovação de quadros, em que se desenvolveu um novo espírito de corpo, um novo ethos na corporação.
Eles definiram que a missão da PF é produzir investigações e provas de qualidade, que tenham impactos efetivos, e essas ideias culminaram nas grandes operações de combate à corrupção e ao crime organizado dos últimos anos, que conferiram à PF grande prestígio e reconhecimento.
O que muitos não se dão conta, inclusive o presidente, é que nessas operações a polícia cumpre ordens de juízes a pedido de procuradores. Ou seja, a PF é uma polícia judiciária, que serve ao sistema de justiça, e não ao presidente ou ao seu ministro.
As acusações de Moro, que apontou tentativas de interferência do presidente, mostram que esse modelo está em xeque? As investidas de Bolsonaro sobre a PF representam um grave retrocesso. Mas elas estão em linha com o que ele vem fazendo com os órgãos de controle e fiscalização desde que assumiu.
Diferentemente de presidentes anteriores, Bolsonaro mexeu no Coaf [Conselho de Controle de Atividades Financeiras], na Receita Federal e em outros órgãos, e vem ajudando a desmantelar a rede de instituições de controle. Para quem se elegeu com a promessa de combater o crime e a corrupção, é certo falar em estelionato eleitoral.
Até no caso de uma instituição independente como o Ministério Público, Bolsonaro não teve dúvida em ignorar a lista tríplice encaminhada pelos procuradores e nomeou um procurador que se fez candidato alinhando seu discurso ao do presidente.
Moro assistiu a tudo isso e pouco fez. Apenas estabeleceu como limite a não-interferência na PF e, diante da investida final do presidente, só lhe restou desembarcar do governo.
No caso da PF, a instituição tem como resistir? Haverá resistência a tentativas de interferência política, derivada daquele ethos que mencionei e apoiada nas instituições de Justiça que interagem com a PF.
Quando [o ex-presidente Michel] Temer trocou o comando da polícia e o nome foi mal recebido pela corporação e seus parceiros no sistema de justiça, seu mandato foi tumultuado e curto. O mesmo acontece no Ministério Público. As chefias dessas instituições podem cair em mãos alheias, mas há uma cultura institucional capaz de resistir a elas.
Bolsonaro recuou após o veto do STF a Ramagem, nomeando outro diretor-geral, e as mudanças feitas até agora parecem ter respeitado a política interna. São sinais dessa resistência? O presidente até recorreu da decisão do STF, mas, na dúvida, nomeou outra pessoa. O novo diretor-geral promoveu imediatamente uma mudança na superintendência do Rio de Janeiro, mas optou por um nome que não figurava na lista de Bolsonaro. Até um delegado da confiança de Moro foi mantido numa diretoria da PF.
Em suma, o jogo passou a ser de acomodação. Mas, para não deixar dúvida de que a temperatura sempre pode subir e que é possível resistir à interferência política, a PF encerrou a semana com uma operação contra um deputado do centrão [Sebastião Oliveira (PL-PE)] que detém influência justamente em um dos órgãos cedidos por Bolsonaro em sua aproximação com o grupo político no Congresso.
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Se o presidente não tem como interferir nas investigações conduzidas pela PF, o que pode explicar sua insistência em mudar seu comando? No pior dos nossos pesadelos, talvez o presidente almeje uma polícia política, em dobradinha com a Abin, e ambas a seu serviço pessoal.
Segundo Moro, o presidente tem especial interesse na Superintendência do Rio de Janeiro e quer um diretor-geral com quem possa interagir diretamente. Esse duplo interesse teria a ver com seus filhos, um deles sob investigação no Rio e outro que é alvo do inquérito sobre fake news no STF.
Tentar influenciar as superintendências faz sentido porque as operações da PF, antes centralizadas em Brasília, foram descentralizadas nos estados a partir de 2007. Mas o presidente deveria manter distância delas, porque a nomeação dos superintendentes é uma decisão compartilhada pelas diretorias e filtrada pela cultura institucional da PF.
Quanto a investigações conduzidas pelo Supremo, a discricionariedade do diretor-geral para indicar delegados parece maior. Alexandre de Moraes se antecipou no inquérito das fake news, do qual é relator, e determinou que os delegados atuais não poderão ser substituídos. Isso mostra que há limites para uma tentativa de Bolsonaro de colocar a polícia a seu serviço pessoal.
Há risco de que a atuação da PF no combate à corrupção seja enfraquecida? Acho que as ações de Bolsonaro, ao seu estilo e por interesses bem particulares, fazem parte da reação do sistema político contra a Lava Jato, iniciada logo após as eleições de 2014. A articulação política que depôs [a ex-presidente] Dilma [Rousseff] o fez com a intenção de pôr fim à operação. Eles imaginaram que Temer e uma nova maioria congressual seriam capazes disso, mas é somente com Bolsonaro que essa tarefa está se completando.
A pauta anticorrupção não avançou no seu governo, o pacote anticrime foi desidratado e medidas contrárias ao padrão Lava Jato foram aprovadas, como a Lei de Abuso de Autoridade e o juiz de garantias.
Não é mera coincidência que o presidente esteja atacando o último elo até agora resguardado da rede de órgãos de controle e investigação, no mesmo instante em que se aproxima do centrão e abre mão do ex-juiz símbolo do combate à corrupção.
Há espaço para reformas, como a instituição de mandato fixo para o diretor-geral da PF? Curiosamente, pautas como a da autonomia das instituições também podem avançar em situações de crise.
Por exemplo, entre o primeiro e o segundo turnos da eleição de 2014, já acossada pela Lava Jato, Dilma baixou uma medida provisória restringindo a escolha do diretor geral da PF aos delegados da classe especial.
Ou seja, ela diminuiu sua própria margem de discricionariedade em favor do maior controle da corporação pelos seus integrantes. Por isso Bolsonaro não pôde agora indicar qualquer um, e teve que escolher um nome dentro de uma lista restrita à cúpula da polícia.
As propostas de emenda constitucional que tramitam hoje no Congresso, uma que dá autonomia financeira à PF e outra que estabelece mandato fixo para o diretor-geral, parecem bastante razoáveis, pois fecham flancos importantes.
A PEC 101/2015 fala em mandato de três anos para o diretor-geral. Além de proteger a chefia de demissões sumárias, o mandato emprestaria previsibilidade à sociedade e ao próprio governo, ao definir um momento para trocas regulares.
Todavia, essas propostas enfrentam duas dificuldades para avançar. Primeiro, a classe política tem receio de empoderar ainda mais a corporação, e essa resistência só deve aumentar num cenário de renascimento do Centrão. Segundo, as carreiras que compõem a própria PF, delegados, agentes e escrivães, se digladiam pelo comando da instituição, o que quebra a unidade da luta pela aprovação de mudanças.
Seria possível cogitar uma autonomia completa da PF? Embora seja possível incrementar a autonomia da PF, não há polícia completamente independente no mundo civilizado. Elas são subordinadas à autoridade política, que responde à sociedade pela qualidade de sua atuação. Quebrar essa cadeia de responsabilização e insular completamente a instituição é um risco tremendo para a democracia e para o estado de direito.
Se devemos evitar a qualquer custo uma polícia política, de outro lado não vejo com bons olhos uma polícia de Estado totalmente autônoma. A virtude está no meio termo, e o modelo brasileiro de uma polícia com sede no Poder Executivo, mas que atende aos comandos do sistema de Justiça, me parece o mais promissor. Esse modelo pode ser aprimorado, mas não abandonado.
Rogério Bastos Arantes, 51, Professor do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP)
Publicou “Ministério Público e Política no Brasil” (2002) e “Judiciário e Política no Brasil” (1997), ambos esgotados. Em 2019, desenvolveu projeto sobre corrupção politica e crime organizado como pesquisador do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP