O pacto entre o Estado e a polícia não pode ser quebrado

Edvandir Paiva

A reforma da Previdência Social encaminhada ao Congresso Nacional, na contramão das sociedades desenvolvidas que tratam os policiais como verdadeiros heróis, mitiga importantes mecanismos de reconhecimento daqueles que atuam na linha de frente da segurança pública e da implementação e sucesso de planos de combate à corrupção, ao crime organizado e às facções criminosas. As alterações também colocam em risco a eficiência das instituições policiais no futuro.

Em um país reconhecidamente violento como o Brasil, o Estado tem que buscar formas criativas para convencer as pessoas a serem e permanecerem policiais em um cenário de guerra. Como atrair para as carreiras os melhores com dados tão alarmantes. Apenas no ano de 2016, 437 policiais foram mortos.

Um policial tem 2,16 vezes mais chances de morrer no exercício de sua função. A profissão tem índices elevadíssimos de suicídio, doenças mentais, comportamentais, normalmente, causadas pelo ambiente estressante e rotineiro enfrentamento do perigo. A escolha de se tornar um policial é quase que um sacerdócio, uma espécie de profissão de fé. Diante dessa terrível realidade, o que leva alguém bem preparado a querer ser policial? Fatores como vocação, remuneração, condições de trabalho, orgulho da instituição e o reconhecimento material do Estado são determinantes para que alguém faça essa escolha, mesmo diante das agruras e desafios. E é exatamente no ponto reconhecimento estatal que entra a aposentadoria policial.

Todo policial federal, por exemplo, faz um compromisso com a sociedade, que, para melhor compreensão, pode ser resumido nos seguintes termos: “Eu aceito proteger o cidadão com a minha própria vida se necessário for. Eu aceito, durante toda a minha carreira, não ter rotina, ser acionado a qualquer horário, inclusive às madrugadas, feriados e dias santos. Eu aceito ser avisado no sábado à tarde de que no domingo pela manhã terei que renunciar ao almoço com meus familiares e me apresentar para ir a algum lugar que não conheço, em qualquer região do país, entrar na casa de estranhos para prendê-los e fazer busca minuciosa em sua propriedade. Eu aceito poder ser enviado para alguma missão permanente ou força tarefa longe da minha casa, dos meus filhos e maridos ou esposas, por meses a fio. Eu aceito ser responsável por decisões e investigações que tornarão muitos meus inimigos, inclusive poderosos. Eu aceito não poder durante todo esse período ter outras atividades profissionais. Eu aceito ter uma vida discreta e ter um círculo de amizades restrito. Eu aceito as sequelas profissionais e andar pelas ruas sempre em alerta, em prontidão, para agir se necessário for em qualquer situação de perigo. Eu aceito sofrer com a estigmatização com que uma sociedade como a brasileira ainda trata a polícia”.

Em resposta a todo esse compromisso, o Estado, embora não ofereça condições ideais de trabalho, também se compromete ao menos em relação à aposentadoria. É como se dissesse o seguinte: “Combinado! Em troca de toda essa dedicação especialíssima, você, policial, terá a retribuição estatal de, ao cumprir vinte anos de atividade estritamente policial e trinta anos de contribuição previdenciária, poder se aposentar sem sofrer redução nominal dos seus rendimentos. E quando seus colegas policiais da ativa receberem reajuste, você também receberá nos mesmos termos. É o mínimo que a sociedade pode te oferecer para reconhecer o quão importante você foi para a garantia da ordem e da paz social e de valores como probidade e justiça, ao dar sua própria vida como aval desses ideais”.

Obviamente, trata-se de uma metáfora para exemplificar essa relação de reciprocidade. Mas, esse acordo tácito firmado entre policial e Estado corre um sério risco, caso permaneçam as regras daquilo que o Governo Federal denomina como “Nova Previdência”. A PEC 06/2019 quebra o tratado que foi feito com antigos policiais, pois altera os tempos necessários para a aposentadoria, sem sequer estabelecer regra de transição na idade mínima exigida, o que evitaria a frustração de ter que planejar novamente a vida de forma brusca e injusta. Há um impacto muito diferenciado para alguém que firmou um contrato com o Estado, se planejou, em alguns casos até deixou de seguir outros rumos, do que com alguém que ainda irá fazer suas escolhas profissionais.

Vale ressaltar que o modo como a proposta trata os novos policiais é tão preocupante quanto a quebra de acordo com quem já é policial. A PEC 06/2019 faz com que aqueles que entrarem na polícia após a reforma tenham apenas duas opções ao fim de suas carreiras: se aposentar com uma redução drástica na sua renda ou trabalhar até morrer. Se não morrer, trabalhar até a idade em que a aposentadoria é obrigatória, hoje fixada em 75 anos. Um dos efeitos inevitáveis dessa nova realidade será a permanência de policiais na ativa mesmo sem as condições físicas e/ou mentais necessárias, criando uma polícia envelhecida e com condições cada vez menores de prestar serviços de qualidade à população.

Outro aspecto importante, provavelmente efeito dessa nova regra, será a evasão ou perda de grandes talentos para o mercado. O Estado não conseguirá atrair as melhores cabeças para uma atividade tão especial e sacrificante quanto a policial. O que resultará em uma polícia menos preparada e mais suscetível a equívocos e falhas. Poderá tornar uma polícia técnica, como é a Federal, em apenas um trampolim para outras carreiras ou fazer com que os policiais busquem cumular a profissão com outras atividades que possam lhes garantir maior segurança quando se aposentarem. Em outras palavras, o Estado, em vez de atrair os melhores, fomentar a dedicação integral e exclusiva e fixar seus profissionais, irá oficializar os “bicos” (atividades profissionais paralelas) e a polícia como instituição de passagem para outras carreiras, que ofereçam menos riscos e exigências.

Além dessas circunstâncias, a “Nova Previdência” ainda é especialmente preconceituosa com a policial. A regra geral diferencia o tempo de idade mínima da mulher em todas as profissões, mas não o faz em relação à mulher policial. Exatamente aquela que tem sua rotina comprometida durante toda a carreira e muitas vezes é obrigada a, não somente acumular jornadas, como desempenhá-las à distância, dadas as peculiaridades da profissão. Esse tipo de regra ainda terá o condão de tornar ainda mais masculinas as carreiras policiais. Algo que vai na contramão da participação cada vez maior do talento feminino em todas as profissões.

Como se já não bastasse tudo isso, como ficam as regras para pensão em caso de morte do policial? É possível resumir numa palavra: crueldade. Alguém que coloca a vida em risco desde que entra nos quadros da instituição até depois da aposentadoria, dado os inimigos que um policial costuma fazer no exercício da função, deixará, em caso de morte, sua família com menos da metade de sua renda. Para quem está suscetível a perder a vida protegendo a sociedade deveria pelo menos ser reconhecido e tratado como um herói. Mas, pelo contrário, até o seguro de vida para policiais é constantemente recusado pelas seguradoras. Muito provavelmente, seremos obrigados a presenciar a ironia de homenagens formais do Estado para a família de alguém que foi morto por ser policial, e ao mesmo tempo abandona-la em dificuldades financeiras decorrentes de uma regra absurda de pensões.

Nem mesmo o aspecto econômico da aposentadoria policial é algo que impeça que o Estado dê o tratamento previdenciário correto e justo. Polícia não é gasto, é investimento. A Polícia Federal é um enorme e bem-sucedido exemplo de retorno de valores ao Estado. Um estudo feito pela Superintendência da Polícia Federal no Ceará, uma unidade de porte médio da instituição, demonstra que a cada um real gasto naquela unidade, três retornaram ao erário. Isso, se ficarmos apenas na questão econômica, uma vez que os benefícios que as polícias retornam à sociedade em sua grande maioria sequer podem ser mensurados.

Portanto, é cediço que a boa situação fiscal e econômica de um país é algo fundamental e que os recursos são escassos frente às necessidades. Por conta disso, se torna obrigatório escolher prioridades. Por todo o debate antes, durante e após as eleições, parecia que a segurança pública, a paz, a ordem social, o combate à corrupção e às facções criminosas estariam no centro dessas escolhas. A reforma da previdência, nos termos em que foi apresentada aos policiais civis, rodoviários federais e federais, bem como a outros profissionais da segurança pública, trouxe sinalização no sentido diametralmente oposto, uma vez que desconsidera as peculiaridades do principal diferencial da implementação dessas políticas, o policial. A sorte é que ainda há tempo de corrigir esse enorme erro.

Edvandir Felix Paiva é delegado de Polícia Federal e presidente da Associação dos Delegados de Polícia Federal (ADPF)

 
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